"Bingo - O Rei das Manhãs" tira as máscaras da vida artística e de década emblemática

Conhecida e festejada até por quem não viveu o período, a década de 80 se tornou uma época icônica para a cultura pop, especialmente a brasileira. Celebrada por diversos aspectos marcantes, essa fase acabou ganhando uma visão romântica no imaginário popular, que deixou de lado detalhes em relação aos exageros e comportamentos transgressores do período. Essa faceta mais "obscura" é destacada no filme "Bingo - O Rei das Manhãs", que procura, também, colocar um holofote sobre características mais melancólicas da vida artística, que vão além dos conceitos glamourosos da fama.
Para isso, o diretor Daniel Rezende escolheu focar em uma das muitas figuras que se destacaram nos anos 80: o palhaço Bozo, que, por problemas relacionados a direitos autorais, se transformou em Bingo. A história se baseia em Arlindo Barreto, um dos intérpretes do Bozo, e suas experiências nos bastidores de um dos programas mais famosos da época.
Em "Bingo", Augusto Mendes (Vladimir Brichta) é um ator de pornochanchadas que busca novas oportunidades na carreira. Depois de experiências frustradas em novelas, ele aposta em um teste para viver o palhaço Bingo, um dos maiores sucessos de audiência da televisão norte-americana, personagem que chega ao Brasil para disputar a audiência das manhãs. Com irreverência e sem filtros, Mendes consegue o papel, mas, por questões contratuais, não pode revelar a ninguém que será o homem por trás da maquiagem de palhaço.
Depois de problemas iniciais, relacionados à adaptação do texto norte-americano para o público brasileiro, Bingo impõe suas estratégias e estilo anárquico e alavanca a audiência da emissora, transformando-se em líder absoluto do horário. Nos bastidores, o palhaço que alegra as crianças se envolve um ritmo frenético regado a álcool, abuso de drogas e muitas mulheres, rotina que é alvo de reprovações da diretora do programa, Lúcia (Leandra Leal).
Além de sentir os efeitos de todos os excessos, Mendes ainda precisa lidar com a falta de reconhecimento de público e crítica, já que passa todo o tempo atrás da "máscara" e ninguém sabe sua identidade. O pouco tempo de dedicação à família, especialmente ao filho, também se transforma em uma questão para o ator, que se prejudica ainda mais por conta do consumo de drogas e álcool.
"Bingo - O Rei das Manhãs" é uma verdadeira volta aos anos 80, até para quem só "viveu" o período através de referências literária, visuais e musicais. Um dos grandes méritos do filme é fugir da visão "romântica" que a época foi ganhando ao longo dos anos, em que os excessos são pouco ou nunca lembrados. A abordagem do longa permite que olhemos a década de forma mais analítica, para entendermos, através do viés da cultura pop, aquele Brasil que ainda vivia os efeitos de uma ditadura militar. Toda a ambientação da época ainda é beneficiada pela ótima fotografia, pelos cenários, figurinos e, especialmente, pela trilha sonora, que reúne clássicos nacionais e internacionais da época.
Apesar de tratar do sucesso de um palhaço na TV, "Bingo" também é um retrato sobre a carreira de um artista, mas que foge dos clichês relacionados a fama e sucesso. O longa vai além e mostra as fragilidades do profissional que está embaixo dos holofotes, com todas as decepções e inseguranças que a carreira pode proporcionar. A busca por reconhecimento e os efeitos da rejeição são vistos em Augusto Mendes e, especialmente, em Marta (Ana Lúcia Torre), mãe do protagonista, uma atriz consagrada que sofre com a escassez de convites para atuar.
Muito do sucesso do filme se deve a atuação de Vladimir Brichta, que mostra absoluta entrega ao personagem e às nuances que formam a natureza alegre e melancólica do palhaço. O ator também não se perde nos momentos de excesso de Mendes, cenas que poderiam soar clichês. Nomes do elenco como Leandra Leal, Ana Lúcia Torre, Emanuele Araújo e Augusto Madeira também ajudam a dar o tom do filme.
Se é que cabe uma crítica, apesar de conduzir muito bem a trajetória do artista por trás do palhaço Bingo, o roteiro se perde no desfecho. Nos momentos finais, para mostrar a transformação de Mendes após o período frenético de excessos, a história não consegue encontrar o ponto de transição do personagem e atropela as mudanças, enfraquecendo a descoberta do protagonista.
Mesmo faltando alguns meses para o fim de 2017, já se pode dizer que "Bingo - O Rei das Manhãs" é um dos grandes filmes brasileiros do ano. Assim como um palhaço ávido pelo reconhecimento, o longa "tira as máscaras" de uma década emblemática e, muitas vezes, romantizada, além de desnudar os conflitos e incertezas da carreira de um artista. De quebra, o espectador ganha uma viagem no tempo, proporcionada por referências e músicas que ajudaram a construir a cultura pop brasileira.

BINGO - O REI DAS MANHÃS

COTAÇÃO: ★★★★ (ótimo)


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