"Democracia em Vertigem" mostra efeito de jogo de interesses e polarização na política do Brasil

A política brasileira vive um período de instabilidade, que se assemelha a uma panela pegando pressão. As investigações da Operação Lava Jato, os processos eleitorais de 2014 e 2018, as manifestações contra o PT e a favor do então juiz federal Sérgio Moro, o impeachment de Dilma Rousseff, a chegada ao poder de Michel Temer, a ascensão política de Jair Bolsonaro. Todos esses acontecimentos fazem parte do caminho que percorremos nos últimos anos, mas, por conta do frescor dessas memórias, ainda temos certa dificuldade em refletir sobre o todo, deixando que o "fígado" ou nossas preferências falem mais alto. "Democracia em Vertigem", documentário lançado na Netflix, é uma das poucas obras lançadas nesse período que pode ajudar a ampliar a visão das pessoas sobre o que estamos vivendo.
Dirigido por Petra Costa, o documentário procura retratar a crise política que o país mergulhou e que segue causando reflexos na sociedade. Para isso, a cineasta começa o filme a partir da chegada ao poder de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002. Usando uma narrativa pessoal, que retrata a visão política da própria diretora, o roteiro mostra os significados e sentimentos causados pela presença do maior representante do Partido dos Trabalhadores no Palácio do Planalto.
Além disso, o longa tenta expor as contradições de um governo que tirou milhões de pessoas da pobreza e criou programas sociais bem-sucedidos ao mesmo tempo em que fez uma aliança com o PMDB (atual MDB) e se distanciou das origens ideológicas do partido, se perdendo em um projeto de poder única e exclusivamente pelo poder.
"Democracia em Vertigem" dedica boa parte do tempo de tela para falar sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff, sucessora de Lula e primeira mulher a chegar ao mais alto posto da república. Mais do que se apegar ao ritual de deposição de Dilma, o documentário revela o jogo de interesses que conduziu esse processo. Tentando emplacar o argumento das "pedaladas fiscais", congressistas brasileiros acabam revelando que a presidente estava sendo julgada politicamente, e não com o rigor e a convicção técnica necessários para isso.
O impeachment de Dilma Rousseff também serve ao filme para detalhar outros dois momentos importantes, que ajudam a explicar parte da instabilidade política que estamos vivendo. Um deles é a contestação do resultado das eleições de 2014 pelo então senador Aécio Neves, derrotado pela candidata do PT. Ao colocar em cheque um sistema de votação seguro e fundamental para a manutenção de uma democracia, o agora deputado federal acende o pavio da deposição, que já se colocava como uma alternativa naquele momento. Defendendo uma fraude nas urnas, sem qualquer prova ou menor sinal disso, Neves provoca uma "rachadura" no recente e frágil pilar democrático que o Brasil vive.
Aparentemente sem saber, ao contestar as eleições daquele ano, o então senador estava alimentando a ascensão política da figura de Jair Messias Bolsonaro, que usou argumentos semelhantes sobre fraudes em urnas eletrônicas para criar terror no pleito de 2018, do qual saiu vitorioso. Esse, aliás, é o segundo momento relevante que pode ser considerado uma consequência do impeachment. A queda de Dilma Rousseff, aliada ao oportunismo dos dividendos políticos gerados pelas investigações da Operação Lava Jato, permitiram que Bolsonaro se colocasse como uma opção de renovação, apesar dos discursos que apontavam retrocessos.
No meio de todos esses acontecimentos, "Democracia em Vertigem" usa uma visão privilegiada para mostrar como a prisão do ex-presidente Lula influenciaria esse cenário. O episódio, que gerou protestos favoráveis e contrários, acirrou os ânimos e, junto com o impeachment, evidenciou uma polarização que só crescia, dando mais voz à raiva de uns e à confiança de outros.
Para os que cobram uma conveniente imparcialidade, o documentário da Netflix pode causar aborrecimentos. "Democracia em Vertigem", além de se misturar com aspectos da vida pessoal da diretora, também deixa clara a visão de Petra Costa sobre a crise política brasileira. Em um mundo ideal, isso não deveria ser um fator desabonador, afinal, é extremamente importante para a reflexão o acesso a pontos de vista divergentes. No entanto, vivemos em um assustador delírio coletivo, o que vai provocar manifestações contrárias ao filme e acusações de partidarização.
Ao mesmo tempo em que acho o filme muito esclarecedor e importante para a reflexão do cenário político atual, sinto falta de algumas análises. Uma delas, por exemplo, e a responsabilidade da intransigência ideológica, tanto da esquerda como da direita, nesse processo. A incapacidade de escuta e da priorização do interesse público acima de tudo foi uma ferramenta usada para aprofundar os abismos da polarização política no país, mas há pouca referência sobre isso, em parte por conta do recorte temporal feito pelo longa.
Apesar de algumas citações, também não faria mal ao filme explorar de que forma a luta de classes sociais influiu em tudo isso. A importância do Mensalão é superficialmente abordada na narrativa e eu gostaria de ver alguma reflexão sobre como o endeusamento de figuras, como Lula, Moro ou Bolsonaro, impacta na política e nas divisões que vemos diariamente. Mas, talvez o debate sobre a necessidade de "heróis" seja mais pertinente em outra obra.
Independente de posicionamento político, "Democracia em Vertigem" é uma ótima possibilidade de análise dos principais acontecimentos políticos do Brasil nos últimos anos, que nos colocaram no momento atual. Acredito que, infelizmente, nem todos vão aproveitar essa oportunidade, cedendo à ideia confortável de politização da narrativa do filme. Quem não se sentir "ultrajado" pelo olhar da diretora, vai ter uma boa chance de pensar o país, afinal, somente fazendo isso poderemos seguir adiante.

DEMOCRACIA EM VERTIGEM

ONDE: Netflix

COTAÇÃO: ★★★★ (ótimo)

Comentários