"Crepúsculo dos Deuses" completa 70 anos mostrando lado impiedoso de Hollywood

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Grande estrela da época do cinema mudo, a atriz Norma Desmond passou a ser ignorada pelos estúdios de Hollywood e, consequentemente, desapareceu da memória dos fãs. Com esperança de voltar a filmar, a artista não hesita diante de uma ligação de um funcionário da Paramount Pictures e vai ao set pensando que acertaria seu retorno às telas com o famoso diretor Cecil B. DeMille, com quem fez alguns sucessos no passado. Recebida com uma falsa pompa pelo cineasta e sua equipe, Norma reencontra alguns poucos colegas, como o iluminador Hog-eye, que faz questão de apontar a luz mais potente do estúdio na direção da atriz esquecida.
Essa é uma das sequências mais famosas de "Crepúsculo dos Deuses", um dos melhores filmes de todos os tempos e que era lançado há exatos 70 anos. Quando chegou aos cinemas, em 10 de agosto de 1950, o longa do diretor Billy Wilder escancarava uma das características mais cruéis de Hollywood: o descarte de artistas que experimentaram o sucesso. Não à toa, "Sunset Boulevard", no título original, continua atual como todo clássico.
O longa começa com uma inovação para os padrões da época. O destaque é o corpo do roteirista Joe Gillis (William Holden), que boia na piscina de uma suntuosa mansão da Sunset Boulevard, a avenida de Los Angeles onde vivem os ricos e famosos, depois de levar três tiros. Sabendo como a história termina, o espectador é convidado a retroceder para descobrir a trajetória do personagem até aquele destino.
Com uma carreira medíocre no cinema, Gillis tenta convencer executivos de estúdios a apostarem em suas histórias, mas, enquanto isso não acontece, pede empréstimos a conhecidos para saldar dívidas. Fugindo de credores, ele acaba indo parar na mansão de Norma Desmond (Gloria Swanson), atriz de cinema mudo que não encontrou lugar em Hollywood com a chegada do som aos filmes. Isolada no casarão, a artista vive apenas na companhia do mordomo Max (Erich von Stroheim), que demonstra verdadeira adoração a ela.
Sempre na esperança de voltar aos estúdios, Norma passa os dias cercada por ilusões. Responde cartas de fãs que, na verdade, são enviadas pelo mordomo e registra ideias para um roteiro em uma pilha de papéis amassados, desejando que o projeto seja dirigido por Cecil B. DeMille. Gillis é contratado para organizar e reescrever o filme idealizado pela atriz, mas acaba virando objeto de uma paixão carente.
Abandonada pelos fãs, pelos colegas de profissão e pela mídia, Norma projeta no roteirista uma chance de ser vista e amada novamente. Para tê-lo por perto, assume um obsessivo controle pela rotina e pelos interesses de Gillis.
Vivendo de expectativas, Norma é procurada por um funcionário da Paramount Pictures e, por conta disso, pensa que vai receber uma proposta para voltar ao set de filmagem. A cena descrita no início do texto, que faz parte dessa sequência do filme, talvez seja a que melhor representa o lado impiedoso de Hollywood. Enquanto a atriz é focalizada pela luz do iluminador, ela recebe a admiração de todos os presentes, mas, assim que a iluminação acaba, a multidão rapidamente se dispersa. Com isso, "Crepúsculo dos Deuses" mostra que, da mesma forma que constrói, o show business se livra de suas estrelas.
Estabelecendo padrões e criando uma máscara de cera da realidade, Hollywood e grande parte da indústria do entretenimento levantam carreiras, criam ídolos, enriquecem e, em determinado momento, decidem que eles não servem mais. Na vida real, como Norma Desmond, muitos atores do cinema mudo não encontraram trabalho nos filmes falados por não se encaixarem em algum tipo de exigência estabelecida pelos estúdios. Outros, que trabalhavam no rádio, apesar do talento, não conseguiram espaço no audiovisual por não serem "bonitos".
"Crepúsculo dos Deuses" ainda é um clássico por se manter relevante, já que esse comportamento não ficou restrito àquele período ou aos estúdios de Los Angeles. Apesar de ter avançado, o show business do mundo todo continua produzindo essas injustiças. Pare um pouco e pense em quantos atores sumiram das telas, seja pela idade avançada ou qualquer outro motivo. Reflita também sobre a quantidade de atores regionais que você nem conhece, porque são "diferentes" demais para os padrões da indústria, ou de músicos que experimentaram o sucesso e perderam espaço para modismos e conteúdos híbridos. Pensou? É isso.
Se o fato de muitos artistas nunca conseguirem atingir às expectativas da indústria do entretenimento já é frustrante, imagine a crueldade com aqueles que, depois de experimentarem as luzes da ribalda, são condenados ao ostracismo. Como viver sem a aceitação e o amor do público depois de ter o estrelato? Alguns vivem bem, outros se ressentem, um grupo passa fome e há os que enlouquecem. Norma Desmond faz parte desse último grupo.
A carência de trabalho e por notoriedade fazem a personagem protagonizar outra grande sequência que entrou para a história do cinema. Tomada por delírios depois de ser vítima de uma Hollywood implacável, a atriz mergulha na ilusão de estar novamente em um set, olha para a câmera e, perto de encarar seu destino, diz estar pronta para o close de DeMille. Uma cena assustadora, hipnotizante e triste.
Filmado em preto e branco, "Crepúsculo dos Deuses" tem um roteiro repleto de grandes falas, daquelas que qualquer cinéfilo adora decorar. Uma das principais é dita quando Gillis reconhece Norma como uma estrela do passado. Disfarçando o ressentimento com a indústria, a atriz solta a frase: "eu sou grande, os filmes é que ficaram pequenos". Nas entrelinhas dessas palavras, estão o desejo e o desespero de uma artista para voltar a ser célebre.
Já revi "Crepúsculo dos Deuses" não sei quantas vezes e sempre parece uma experiência nova. Uma das obras-primas de Billy Wilder, o longa continua grandioso e atual, mesmo depois de sete décadas. Padrões vieram e voltaram, mas as vítimas dessa crueldade do show business continuam aí, esquecidas na coxia e sempre com a esperança de serem chamadas de volta à cena.

CREPÚSCULO DOS DEUSES

COTAÇÃO: ★★★★★ (excelente)

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