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Assim como os demais setores, o cinema também teve que lidar com as adversidades causadas pela pandemia do novo coronavírus em 2020. Salas fechadas e, depois, com restrições de capacidade; lançamentos de filmes adiados; aquisições para streamings; e decisões sobre o ainda incerto futuro do mercado marcaram o ano da sétima arte.
Aqui no Brasil, um cenário um pouco mais devastador se estabeleceu. Além da impossibilidade de seguir com produções em andamento, o cinema brasileiro também enfrenta o desafio de resistir ao descaso do governo com o setor cultural e o desmonte de órgãos oficiais responsáveis por apoiar essa área já tão negligenciada e que emprega milhares de profissionais.
Apesar da redução considerável de lançamentos, não podemos dizer que 2020 foi uma terra totalmente infértil de bons filmes. Os serviços de streaming foram os principais responsáveis por fazer chegar ao público os grandes destaques cinematográficos do ano, movimento esse que levanta muitas questões sobre a forma de consumirmos cinema a partir de agora.
Selecionei os 10 melhores filmes lançados em 2020, que, de alguma forma, não permitiram que ficássemos órfãos de boas histórias ao longo desse período de pandemia. São eles:
Dar boas risadas sempre foi fundamental e ganhou ainda mais importância nesse ano. A comédia romântica "Palm Springs", do diretor Max Barbakow, garantiu a presença de um humor despretensioso e inteligente em 2020. O longa é estrelado por Andy Samberg e Cristin Millioti, que vivem um casal que se conhece em uma festa de casamento e acaba vivendo uma situação curiosa e angustiante. "Palm Springs" é daqueles filmes que é melhor assistir sem muitas informações anteriores, já que as surpresas são muitas e os spoilers podem prejudicar a experiência. O que dá para dizer é que o roteiro é simples e inesperado ao mesmo tempo; a direção é ágil; e os atores estão ótimos, incluindo Samberg, que geralmente não me causa simpatia, e J.K. Simmons, que mais uma vez rouba a cena com um personagem pequeno. Sorriso no rosto do início ao fim da exibição. "Palm Springs" foi lançado diretamente no Hulu, nos Estados Unidos, e ainda não chegou aos serviços de streaming por aqui.
Reconhecido como um dos melhores roteiristas em atividade, Aaron Sorkin assume jornada dupla em "Os 7 de Chicago", longa onde também atua como diretor. Ao retratar o julgamento de réus acusados de incitar revoltas contra o governo dos Estados Unidos na década de 60, Sorkin abre um diálogo com o presente sobre violações de direitos fundamentais e nos chama atenção para a importância da indignação contra esses excessos, que continuam sendo praticados. Mesmo não trazendo elementos novos, a narrativa de "Os 7 de Chicago" se beneficia dos diálogos dinâmicos criados por Sorkin e das boas atuações, qualidades quem podem ser lembradas na próxima temporada de premiações. O filme está disponível no catálogo da plataforma de streaming Netflix.
A atriz e agora diretora Bárbara Paz conseguiu um feito notável, que muitos cineastas experientes não atingem: fez de um projeto que parecia muito pessoal uma obra capaz de chegar ao coração de todos. O documentário "Babenco - Alguém Tem Que Ouvir o Coração e Dizer: Parou" utiliza registros íntimos para falar sobre a vida e, especialmente, a morte do cineasta Hector Babenco, com quem a diretora foi casada. O filme não conta detalhadamente a vida toda do diretor, mas passeia por momentos importantes e mostra como eles influenciaram na filmografia de Babenco. O foco principal, no entanto, é a forma como o cineasta enfrentou diversos problemas de saúde até 2016, quando faleceu. O resultado é belíssimo e nada pesado, muito pelo contrário. Bárbara encontra poesia na dor e acaba por fazer uma celebração à vida e à obra do marido. "Babenco" é o representante do Brasil a uma vaga no Oscar 2021 e está disponível para locação no Now.
O rapper Emicida já era uma voz a ser escutada nesse Brasil insano onde vivemos, mas ele passou a ser ainda mais importante depois do lançamento de "AmarElo - É Tudo pra Ontem", documentário que, além de registrar um show histórico do artista, também revisita figuras e acontecimentos importantes da história brasileira, muitos sem o merecido destaque. Sem meias palavras, Emicida fala sobre escravidão, racismo estrutural e processos de gentrificação que marcaram a nossa sociedade. O rapper chama o espectador à realidade, mas faz isso com muito afeto. O resultado é um convite para nos conectarmos com o próximo e darmos as mãos no combate às injustiças. Disponível na Netflix, "AmarElo" foi uma das mensagens mais fortes e necessárias que precisávamos ouvir em 2020.
Gêneros como o terror e a ficção científica geralmente utilizam alguns artifícios para explorar os sentidos do espectador e, assim, enriquecer a experiência cinematográfica. "A Vastidão da Noite" eleva o patamar dessa proposta e faz um convite para algo ainda mais imersivo. Aqui, os personagens e o público desconhecem o visual de uma ameaça extraterrestre que chega a uma cidade do interior dos Estados Unidos. A câmera frenética do filme segue os protagonistas e imprime a mesma agonia deles ao público, influenciado apenas pelos sons daquelas criaturas. É louvável o que essa produção de ficção científica consegue fazer com tão pouco, já que não conta com orçamentos ou recursos milionários. Com simplicidade e criatividade, "A Vastidão da Noite" não garante um lugar só entre os melhores do ano, mas também entra na lista dos principais filmes do gênero da última década. Pode ser visto no Amazon Prime Video.
O discurso poderoso do diretor Spike Lee rendeu, em 2020, mais um grande produto cinematográfico. "Destacamento Blood" conta a história de um grupo de amigos que lutou na Guerra do Vietnã e que, décadas depois, volta ao local para recuperar um tesouro e para dar um enterro digno aos restos mortais de um companheiro que morreu no campo de batalha. Isso é tudo o que dá para dizer sem cair em spoilers, já que o longa é cheio de reviravoltas e apresenta personagens com diversas camadas. Racismo, política, ressentimento, loucura, ganância, traumas, mentiras e violência são os principais elementos dessa história de ritmo crescente, que surpreende o espectador e mexe em questões fundamentais da sociedade norte-americana. O elenco todo é ótimo, mas vale a pena destacar o trabalho espetacular de Delroy Lindo, que vive um homem extremamente afetado pelo passado na guerra. "Destacamento Blood" faz parte do catálogo da Netflix.
O ator Riz Ahmed vive o protagonista Ruben, um baterista que descobre estar perdendo a audição de forma muito rápida. De uma hora para outra, o personagem passa de uma rotina de sons estridentes para a agonia de não escutar praticamente nada. Em busca de ajuda, ele passa a morar em um centro de reabilitação focado, também, no atendimento a dependentes químicos. "O Som do Silêncio" mostra a resistência de Ruben em aceitar a nova condição, caminho marcado por descobertas e ilusões. Para pontuar bem a situação do protagonista, recursos sonoros são muito bem utilizados e fazem o espectador ter a dimensão de como Ruben absorve os sons ou mergulha em incômodos silêncios. É uma jornada de aceitação, que passa por negações e choques até culminar em um desfecho promissor, ainda que pareça pouco otimista. "O Som do Silêncio" pode ser visto no Amazon Prime Video.
Teatro e cinema têm as respectivas linguagens misturadas nessa adaptação da obra do dramaturgo August Wilson. Em "A Voz Supremo do Blues", acompanhamos um dia de gravação do álbum da cantora Ma Rainey, interpretada brilhantemente pela atriz Viola Davis. Ao impor exigências e obstáculos para a conclusão do disco, a artista estabelece uma disputa de poder com os executivos da gravadora, acostumados a explorar o talento de músicos negros. Paralelo a isso, o trompetista Levee, vivido por Chadwick Boseman, trava embates com os colegas para defender o sonho de ser um artista renomado e deixar para trás as injustiças que sofreu. O filme é marcado por diálogos vigorosos e monólogos de fôlego, utilizados para levantar discussões sobre racismo e a exploração do trabalho de negros por brancos. Além do texto, outra força do longa são as atuações, especialmente de Viola e Boseman, que devem ser lembrados nas premiações de 2021. "A Voz Suprema do Blues" compõe o catálogo da Netflix.
Qual o sentido da vida? Existimos por algum propósito? Estamos valorizando o que realmente importa? Essas não parecem questões para um filme de animação, mas a Pixar consegue desenvolvê-las como ninguém. "Soul" agrada públicos de todas as idades, mas eu arrisco dizer que são os adultos que aproveitam mais a experiência. A história do músico Joel Gardner, que sofre um acidente e vive uma experiência extracorpórea, provoca uma verdadeira catarse no espectador mais maduro que se aflige com dúvidas sobre a existência humana. O filme faz rir e chover com a mesma facilidade e, no final, promove uma purificação de alma no adulto que se identifica e se comove com a trajetória de descobertas do protagonista. É um cinema que causa rebuliço nos nossos sentimentos e que faz um bem danado. Pode ser visto no Disney+.
O mais recente filme do diretor David Fincher está longe de ser uma unanimidade, mas essa divisão de opiniões é bastante compreensível. "Mank" fala sobre o processo de criação do clássico "Cidadão Kane", considerado um dos maiores filmes de todos os tempos, ao mesmo tempo em que retrata a Hollywood dos anos 30 e o contexto político da época. O longa resgata, ainda, uma controvérsia sobre a autoria de "Cidadão Kane", disputada entre o diretor Orson Welles e o roteirista Herman Mankiewicz. Com roteiro de Jack Fincher, pai do diretor, "Mank" é uma obra-prima, mas não agrada a todos. O alcance do filme fica restrito a espectadores com interesses específicos, entre eles, a história do cinema e a situação política do período, influenciada pela Grande Depressão e pelo papel que Hollywood desempenhava. Feito em um belíssimo preto e branco, o longa utiliza elementos cinematográficos inseridos na indústria justamente por "Cidadão Kane" e conta com um desempenho brilhante de Gary Oldman, que dá vida ao protagonista. Esse espetáculo de cinema faz parte do catálogo da Netflix.
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