"Eu Me Importo" perde rumo inicial e desperdiça bom enredo

Divulgação/Netflix

Seja por falta de planejamento ou pela tentativa de resolver conflitos da maneira fácil, alguns filmes deixam a sensação de que o espectador viu duas histórias diferentes. "Eu Me Importo", disponível no catálogo da Netflix, é um desses casos. Depois de um começo promissor, sustentado por um enredo interessante e doses de humor sombrio, o longa de J Blakeson descamba por outro rumo e termina desperdiçando tudo o que foi construído no início.

Comecemos, então, falando da primeira metade de "Eu Me Importo", que representa o melhor do filme. Marla Grayson (Rosamund Pike) é uma guardiã legal constantemente acionada pela justiça norte-americana para assumir os cuidados de idosos e pessoas incapazes de responder pelo próprio bem-estar. À primeira vista, o trabalho pode ser encarado como nobre e abnegado, mas esse não é o caso da protagonista.

Utilizando uma rede de parceiros, que vão de médicos a diretores de casas de repouso, Marla escolhe pessoas aparentemente vulneráveis ou que possam dar a ideia de serem negligenciadas pela família. O objetivo da guardiã é só um: dinheiro. Nesse papel, além de ganhar poderes para tomar decisões sobre os tratamentos mais adequados, ela também recebe autorização do Judiciário para dispor de todo o patrimônio dos idosos, sempre com a desculpa de zelar pela vida deles.

Na busca por mais uma vítima para aplicar o golpe, Marla e sua rede criminosa chegam a Jennifer Peterson (Dianne Wiest), uma mulher solitária, muito rica e aparentemente frágil. Sem muito esforço, a guardiã vai ao tribunal e consegue assumir a responsabilidade emergencial pelos cuidados da idosa, que resiste o quanto pode, mas acaba sendo levada para uma casa de repouso.

Enquanto Jennifer é contida por um batalhão de médicos, enfermeiros e seguranças, Marla vende a casa da idosa; leiloa os móveis e as obras de arte; e limpa o cofre do banco. A guardiã nem considera ter alguma dor de cabeça na operação, justamente porque a nova assistida não tem nenhum parente que possa reclamar da abordagem. Porém, Roman (Peter Dinklage), um homem que possui uma ligação misteriosa com a vítima, descobre que Jennifer está sob a tutela legal da protagonista e decide fazer de tudo para tirá-la dessa situação. É nesse ponto que o filme se transforma em outro.

Divulgação/Netflix

Pega de surpresa pela conexão entre Jennifer e o homem misterioso, Marla passa a ser perseguida por integrantes da máfia russa, que, além de libertar a idosa, querem reaver diamantes que estavam guardados no cofre dela.

"Eu Me Importo" é um filme muito promissor na primeira metade. O enredo elaborado e inusitado vende ao espectador uma ideia de sagacidade; de humor sombrio; e até de uma discussão sobre empreendedorismo construído às custas de outras pessoas, brechas legais e limites éticos. Tudo isso, no entanto, fica pelo meio do caminho.

Diante de tantas qualidades, o filme escolhe abandonar todas e, do meio para o final, vira um filme clichê de perseguição e máfia, daqueles que surgem aos montes por aí. O roteiro ignora, inclusive, personagens que tinham destaque na primeira parte, como é o caso de Jennifer, que passa a fazer uma quase figuração na história. O desprezo pela construção inicial compromete drasticamente o resultado final. O espectador é levado a acreditar que teria um bom entretenimento, mas acaba descobrindo um longa repetitivo e bem mais medíocre do que a proposta inicial.

No meio dessa irregularidade, algo segue sempre nos trilhos: a atuação de Rosamund Pike. A atriz constrói uma Marla deliciosamente impiedosa, esperta e com objetivos bem definidos. Não se surpreenda se, durante o filme, vier à cabeça o desempenho dela em "Garota Exemplar", pois há uma relação entre a dissimulação das personagens. Rosamund parece ter desenvolvido um talento especial para interpretar os gestos e as reações de alguém que esconde a personalidade e adota convenientemente a figura de altruísta e frágil. Dianne Wiest também merece destaque, ainda que desfavorecida pelas péssimas escolhas feitas para Jennifer Peterson.

"Eu Me Importo" é um combo de dois filmes em um. O primeiro é muito promissor e prende facilmente a atenção com um enredo inteligente e bem elaborado, pontuado por doses de humor sombrio. É prudente, no entanto, não se apegar demais a essas qualidades, pois o segundo longa, que começa na metade da exibição, varre tudo isso da tela e tenta te fazer mergulhar em uma história batida com perseguições e mafiosos. A sensação final é de frustração e até de pena, pois uma boa proposta foi desperdiçada diante dos nossos olhos.

EU ME IMPORTO

ONDE: Netflix

COTAÇÃO: ★★ (regular)

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